“A arte
de viver da fé / Só não se sabe fé em quê”
DIA 1
A obra
de Vanessa Barbara, “O livro amarelo do terminal”, é estonteante. Foi a minha
maior delicinha das férias até então. O livro se baseia numa pesquisa feita
pela autora, no terminal Tietê em São Paulo, para um trabalho de conclusão de
curso, durante o ano de 2003 – mas que poderia ter sido feito hoje, numa
sexta-feira modorrenta, de quase chuva, de julho de 2014, já que os fatos
narrados, as personagens apresentadas e as críticas feitas continuam as mesmas,
teríamos apenas que trocar o nome do governador e de alguns passageiros de José
pra João.
Ela aborda
cenas incríveis, narradas sem começo nem final, em fragmentos verossímeis, já
que representam um vislumbre, um olhar rápido, que se tem daquilo que acontece ao
seu redor. A impressão que ela nos dá era de ser uma transeunte, que passava
pelos corredores da rodoviária observando tudo à sua volta e narrando quase
tudo ao mesmo tempo. Portanto há cenas que começam com um filho perdido,
esperando a mãe vir buscá-lo, cortada por um trecho de livro que a autora
conseguiu ver por cima dos ombros de alguém que estava lendo sentado, seccionada
novamente por uma briga de casal, interrompida mais uma vez por uma mãe
checando se a fralda do filho está suja. É sensacional, porque quem já pisou
nesse terminal sabe que não tem como ser diferente, é o público e o privado
convivendo como numa trincheira de guerra; e a linguagem jornalística,
misturada já a uma estética literária eficaz tornam a leitura mais que
agradável.
A jornalista
conseguiu conversar com o pessoal da limpeza, com as moças das cabines de
informação, com os responsáveis pelos banheiros e entrega de toalhas, com os
locutores de avisos oficiais, com a administração, carregadores, puxadores de
corda, porteiros, representantes de imprensa e vendedores ambulantes, sem
contar nos inúmeros passageiros que abordou ao longo do ano de pesquisa. E o
incrível é que o modo de falar de cada um foi preservado, garantindo que o
leitor quase escute a voz de cada personagem. A linguagem, portando, é
riquíssima, que beira o lirismo em certas horas e o tom crítico, de uma jornalista
engajada, em outras. O livro é vivo, quase humano, em que as cenas saltam das
suas mãos.
A diagramação
do texto é original e metafórica, pois as páginas são todas amarelas, iguais a
de uma lista telefônica, para dar a impressão de que tudo pode ser encontrado
no terminal Tietê, assim como se encontra o que quiser nas páginas amarelas das
listas. Há entre a narração, letras de músicas, trechos de livros, carimbos,
formulários; ou seja, a forma do texto justifica e exemplifica seu conteúdo
caótico e divertido.
Porém não
é só de diversão que o texto é feito, em páginas brancas, são copiados trechos
de jornais da época da construção do terminal que veiculavam as falcatruas e
atrasos da obra. Os comentários da autora no meio dessas reproduções
jornalísticas nos atentam a como o Brasil simplesmente não muda: o dinheiro
continua sumindo, construções faraônicas só dão trabalho e nenhum resultado,
nossos políticos continuam se utilizando dessas obras para ganhar votos e o
povo se deslumbra só com a beleza, mesmo com a baixa funcionalidade do sistema.
Um exemplo lindo disso é o trecho do terminal de embarque, que é dividido em três
espaços: 1. o vip, com ar condicionado, engraxate elétrico, chocolate quente e
cadeiras acolchoadas; 2. o comum, da classe média que se contenta em ficar de
pé ao esperar os ônibus, pois pelo menos está protegida do barulho e da fumaça
por paredes de vidro; 3. o embarque em direção ao Nordeste, que fica dentro da
área de desembarque (????), sem proteção, cadeiras, muito menos chocolate
quente. É a divisão social brasileira dentro do terminal.
Em outros
momentos, ao mesmo tempo pessoais e genéricos, a burocracia brasileira se
desnuda, principalmente no que compete à imprensa. Acompanhamos a dificuldade
que a narradora passou para conseguir informações que LEGALMENTE são de livre
acesso ao público – Vanessa faz, ironicamente, da lei o título para esse
capítulo -; vemos a manipulação de repórteres, que só podem ter acesso a
trabalhadores previamente treinados a “passar as informações corretas”, mentiras
deslavadas que protegem apenas a empresa privada que gerencia esse órgão
público e não os funcionários em si. Mas ao mesmo tempo que a chefe da equipe
de imprensa do terminal diz isso de maneira arrogante à Vanessa, a jornalista
já havia transitado livremente pela rodoviária por seis meses, sem que ninguém
tivesse tomado conhecimento de sua pesquisa, desnudando o paradoxo do sistema
que se constrói rígido, mas que rui aos nossos olhos em brechas enormes e
profundas.
Talvez o
amarelo desse livro seja um sinal de atenção ao brasileiro, já que o terminal
exemplifica muito bem nossa diversidade, atraso, ganância, pobreza e fé. Fé por
ter alguém te esperando ao desembarcar, ou em conseguir juntar durante o ano o
dinheiro necessário pra se voltar pra casa. Fé em um dia não precisar mais
viajar. Fé em deixar de ser locutor de notícias do Tietê para virar cantor de
bingo domingueiro. Fé em ver o Brasil melhorar e ter dinheiro e tecnologia,
usando-os finalmente em favor do povo.
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